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Jogos violentos: a (ir)responsabilidade da indústria... e dos pais


Não sou psicólogo. Não sou pedagogo. E portanto sou pouco habilitado a mandar bitaites sobre a questão da violência dos jogos e do seu impacto na sociedade. Mas pertenço à indústria "dos computadores". E sou pai. Por isso acho que posso e devo ter uma opinião formada sobre este assunto.

Brincar, jogar, são actividades fundamentais no desenvolvimento de qualquer animal "superior", em particular o homo sapiens. E para que servem estas actividades? Servem para treinar o corpo e a mente para as actividades que irão ser realizadas durante a vida adulta.

Dentro desta óptica, que me parece não fugir muito ao consenso sobre a utilidade da brincadeira durante o desenvolvimento, o jogo tem a função de criar e solidificar hábitos e reacções a estímulos que, quando são necessários mais tarde serão utilizados de uma forma perfeitamente inconsciente pelo adulto.

Em poucas palavras:

jogo = treino = condicionamento


Uma boa parte da indústria do software dedica-se, como todos sabemos, a criar jogos. O que é um negócio perfeitamente legítimo. Infelizmente, parte desses jogos recorre frequentemente a uma violência extremamente gráfica e cada vez mais realista, para criar estímulos nos seus utilizadores.

A imagem que se apresenta acima corresponde a um anúncio enganador usado por uma software-house que produz estes jogos. Nalguns países mais atentos, este anúncio foi proibido. Não nos deixemos iludir: o treino da violência não dá paz interior. Antes dá propensão para o uso da violência como solução fácil para qualquer problema.

Muitos pais assumem que, como os jogos se vendem livremente nas lojas, são inócuos. Posso relembrar que o consumo de cocaína, há 100 anos atrás, era aconselhado às senhoras de sociedade por muito boa gente? Nem por isso era inócuo. Alguns pais chegam a dizer que não há razão para preocupações, porque as crianças "sabem distinguir o que é jogo do que é realidade". Mas esquecem-se da função condicionante do jogo, que faz com que as reacções se tornem automáticas quando os estímulos adequados se apresentam. Talvez valesse a pena fazer um estudo sobre o surgimento da moda do street racing, com o enorme desrespeito pela vida dos outros utilizadores da estrada, e verificar qual a influência da enorme quantidade de jogos de condução violenta que apareceram nos últimos anos.

O apuramento das espécies pela selecção natural acabou por ditar maiores probabilidades de sobrevivência aos indivíduos que retiravam mais prazer da brincadeira (porque treinavam mais). Na espécie humana, pela grande complexidade da sua cultura e das suas actividades, o jogo ganha uma importância especial. Daí que os seres humanos tenham uma enorme apetência pelos jogos, em especial durante a infância e juventude.

Uma parte da indústria dos jogos aproveita-se irresponsavelmente desta característica humana, numa atitude pouco ética que não beneficia em nada os seus clientes. Os pais olham para o outro lado e não percebem os mecanismos neurológicos que estão em acção. O resultado é que os jovens são condicionados para reagir de forma violenta e ser-lhes-á difícil e trabalhoso desmontar esses reflexos na vida adulta, dificultando a sua integração numa sociedade pacífica e próspera.

Comentários

  1. Concordo que existe algum condicionamento mental. Mas não é igual para todas as pessoas. E se as pessoas se deixam abalar por uma coisa destas, é porque secalhar as fundações da personalidade já não eram muito sólidas.

    Eu encontrei as minhas fundações na fé. Não posso dizer que foi um caminho linear, mas se uma religião serviu para unificar um continente durante uns séculos, é porque secalhar não está completamente errada. E digo isto: comparo a fé cristã católica, com a muçulmana, com as chinesas (taoísmo, confucionismo, budismo), e vejo os paralelos. Os paralelos existem porque estas religiões apontam no mesmo sentido. Comparei os ensinamentos base com a minha experiência de vida e penso que estão certos: não violência, respeito pelo próximo. Penso que estas religiões apenas diferem no pormenor. Penso que as pessoas estão tão apaixonadas pelas aparências, que se afastam da religião por questões de pormenor ou moda, sem sequer pensar duas vezes se aquilo faz mesmo sentido.

    Até o Napoleão, quando viu o que se passou na França, após a abolição da religião durante a revolução Francesa voltou para trás.
    Quando a argamassa apodrece, apenas ficam os tijolos individuais e a parede é fácil de derrubar.

    Também penso que foi um erro colossal quando se desresponsabilizaram os tutores pelos actos practicados pelos menores. A responsabilidade civil pela educação dos menores estava distribuida pela sociedade, e agora está concentrada no Estado. Ora o Estado tem mais que fazer, que andar a destacar um Polícia para cada criança.
    Alguns pais, não digo todos, mas alguns, esqueçem-se que têm filhos com muita facilidade. Casa de pais, escola de filhos.

    Quanto à indústria dos jogos, agora está equiparada à dos filmes.

    Antes os jogos eram mais estilizados, mais desenho animado, e era mais fácil de distingir a diferença entre estes e a realidade.

    Agora joga-se contra outras pessoas e os gráficos são muito realísticos. Isso não era problema, se fossem para maiores de 18 anos, mas não é o caso.

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  2. Embora a questão da fé e da religião seja um assunto perfeitamente deslocado num blogue sobre tecnologia, não posso deixar de relembrar que a religião tem sido o fundamento da maior parte das guerras e mortandades. E quanto à fé, pergunto-me: se os mártires muçulmanos usassem um pouco mais da dúvida metódica e tivessem menos fé nas 72 virgens que julgam ter à espera, será que os cristãos americanos ainda teriam força para inventar novas cruzadas que nos prejudicam a quase todos?

    Deixando de parte a discussão sobre fé e religião, que nos levaria muito longe mas não cabe aqui, gostaria apenas de reforçar o meu argumento: a utilização intensiva de jogos violentos treina o utilizador para reacções violentas absolutamente inconscientes e involuntárias. Trata-se de um processo neurológico que não tem nada a ver com consciência.

    É para isso que serve o treino: para que as reacções se produzam sem pensar.

    O meu post pretendeu apenas chamar a atenção para a questão ética de uma indústria que produz jogos que treinam as reacções violentas. Só isso, e o facto de muitos pais ignorarem o efeito que estes jogos têm nos processos mentais dos seus filhos.

    "Tu és aquilo que fazes"

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